Há no espólio artístico da fotógrafa Americana Cindy Sherman uma característica marcante: a ideia de conceptualização das imagens. De facto, ela é muito conhecida pelos seus diversos autoretratos, fotografias de uma plasticidade incrivelmente demarcada. Sabe-se que, na altura em que Sherman se sentiu interessada pelas artes visuais, começou pela pintura; mas cedo se sentiu frustrada, como se estivesse apenas a calcar os trabalhos de outros.
“Then I realized I could just use a camera and put my time into an idea instead”.
Esta afirmação confirma, de facto, essa maneira de fazer imagens, baseada não na captação de um instante espontâneo e real, mas na construção de uma forma estética muito própria, muito pessoal. O trabalho de Sherman é apresentado sob a forma de séries. Na verdade, não poderia ser doutra maneira: os seus fotogramas, se isolados, perderiam toda e qualquer lógica, sendo que é nesses conjuntos que se pode desvendar algumas das questões que minam de significados e premissas a obra da artista.
Na primeira grande série de Cindy Sherman, Untitled Film Stills (1977-1980), toda a preto e branco, vemo-la desdobrar-se em várias personagens, nomeadamente actrizes de filmes de Hollywood, de Série B e de film noir. Estas imagens, que vão desde a granulada, a ligeiramente desfocada, a do exterior, a de interior, a da cidade e a do campo, têm, na sua grande maioria, uma musicalidade muito característica. Não só em termos temáticos, mas também na composição visual da maioria destas fotografias, há uma estética muito cuidada que remete imediatamente para a presença de uma diversidade de sons (alguns melodiosos, outros menos) que criam um elevado número de sensações.
Em termos gerais, sabemos que a música está intrínsecamente ligada ao conceito de tempo. Em qualquer lado se pode ler a definição: “A música constitui-se de uma sucessão de sons e silêncio organizada ao longo do tempo”. E as imagens? Qual a possível relação imagens – som – tempo? É óbvio que uma imagem fotográfica é a perpetuação de um momento que existiu no tempo; mas é um corte nesse tempo, uma paragem, um congelamento. A música é propagação pelo tempo. Neste sentido, as imagens fotográficas que apresentem uma forte componente de musicalidade são as mais completas: sendo um corte no tempo, sugerem um ritmo, uma melodia, um compasso, especialmente através da forma. Aqui é imperativo que se faça um paralelo com o conceito de abstracção.
No caso específico de Untitled Film Stills, que nos remetem aos Anos 50 (o pós-Guerra), cada fotograma representa esse corte acima mencionado, sendo que o tempo (em sentido mais abstracto e musical) é um tempo morto e frio, plástico e artificial, quase indiferente. O paradoxo da tentativa de despersonalização de Sherman nos seus autoretratos talvez seja a maior justificação para a existência desta quase não-existência temporal.
O que vemos nesta série é um conjunto de roupas, poses, gestos e aparências que já são um cliché. Sherman usa-as como arma para denunciar o conceito de que a imagem singular de cada um de nós está condicionada aos olhares alheios. Há todo um código moral e social que restringe quase em absoluto a nossa verdadeira essência.
O facto de haver todo um conjunto de significados por detrás das fotografias da artista, permite fazer um paralelismo interessante; enquanto a música estabelece uma relação entre o compositor e o ouvinte, as imagens estabelecem a relação entre o artista e o espectador. A necessidade de haver algum tipo de comunicação, seja sob que forma for, está sempre presente em quase tudo o que o Homem faz. Enquanto “compositora”, Cindy Sherman apresenta-nos uma complexa partitura que representa e critica subtilmente o padrão da sociedade.
No Film Still #06, por exemplo, vemos Sherman deitada por cima de lençois e colchas, em roupa interior, com um casaco aberto. As pregas e dobras dos tecidos, algumas curtas, outras longas, bem como a posição estratégica do corpo da fotógrafa (o tronco esticado e a perna dobrada) sugerem uma progressão musical, a sucessão de sons aleatórios que se entrelaçam. O estampado floral e o olhar, a maquilhagem e o cabelo marcam uma artificialidade que, na presença de uma voz, constituiria, sem dúvida, um falsete. Já o Film Still #34, com Sherman quase na mesma posição, também deitada sobre um lençol, sugere um tipo de musicalidade completamente distinto. O dramatismo inerente ao escuro do lençol, às sombras que a iluminação lateral cria e ao fatalismo da expressão da fotógrafa, remetem para uma intensidade sonora irregular, feita de uma sucessão não síncrone de sons e silêncios, que cria alguma inquietação.
A presença de água em algumas das fotografias desta série, enche o olhar de alguma harmonia. Tanto no Film Still #25 como no Film Still #46, este elemento tem um significado muito específico. Em ambas as fotografias, vemos como a superfície da água está calma. Sabemos, no entanto, que há uma vida imensa nas suas profundezas. O facto de, no #46, Sherman emergir dessas profundezas ou de, no #25, ter uma postura rígida em conformidade com um olhar carregado, quebram um pouco com essa harmonia, criando alguma dissonância.
Ainda nesta série, os exemplos de musicalidade mais demarcada são os fotogramas em que Sherman se usa muito das linhas (especialmente de edifícios) na composição da imagem. São exemplos significativos disso os Film Stills #21, #35, #48, #58 e #63. Neste último, vemos uma Cindy Sherman pequena, em escala, num edíficio com longas linhas verticais, em paralelo com as horizontais duma longa escadaria. Está nela presente uma escala de tons rigída, um ritmo bem demarcado, periódico e estruturado. A frieza de pedra dos edifícios citadinos captados pela câmara de Sherman remete para um conjunto de sons agudos, uma possível alternância entre allegros e adagios.
O Film Still #36 está repleto de musicalidade. E essa musicalidade é-nos dada através da luz (o contra-luz, neste caso). O pano branco e o vestido branco, com ondas suaves e largas, lembra uma doce harmonia. Ingenuidade. A pose de Sherman, de lado, braços levantados, remete para o movimento, uma possível dança não estruturada, mas ao sabor do som. A intensidade da musicalidade, nesta imagem, está comprimida entre o pianissimo e o mezzo piano. Trata-se aqui de um adagio melancólico. Em oposição a este, mas também repleto de musicalidade, temos o Film Still #32. Também ele tem o cerne da sua musicalidade centrado numa pequena fonte de luz (do fogo que vai acender o cigarro), mas a grande diferença é que já não trata a ingenuidade, já nada é branco, tudo é escuro. E ela é bem visível, espécie de mulher fatal. Com um tom mais sóbrio, esta fotografia lembra um prelúdio (possivelmente de Tchaikovsky); consideravelmente perturbador.
Temos, pois, que, embora subjectivo, não é difícil identificar características musicais na arte fotográfica. Esta complementariedade é extremamente benéfica. Se a música também tem o seu valor estético, porque não há a fotografia de ter o seu valor sonoro abstracto?Da mesma forma que a música (especialmente a erudita) exige do público uma atitude contemplativa, também a fotografia. Porque não contemplar ambas, se isso as torna mais intensas, mais apelativas?
Na verdade, a presença da musicalidade constitui um verdadeiro estímulo visual.
Sara Toscano