O “Ensaio Sobre A Cegueira” é a história de uma misteriosa epidemia que causa “cegueira branca” e que se alastra numa cidade sem nome e por quase todos os seus habitantes. Entre os primeiros a ficar cegos está um oftalmologista e alguns dos seus pacientes, que são rapidamente detidos pelas autoridades e largados num já abandonado instituto para doentes mentais.
A mulher do oftalmologista conserva misteriosamente a visão mas, ao ponto de querer estar com o marido, finge estar cega de maneira a ser levada com ele. A partir deste momento torna-se uma testemunha (e uma janela para o leitor) dos horrores da epidemia, ajudando como pode os cegos que a rodeiam. Como a epidemia se alastra rapidamente e as instituições que regem a sociedade começam a falhar, o pequeno grupo de cegos liderados pela mulher do médico tem de se adaptar rapidamente de maneira a sobreviver às terríveis circunstâncias e consequências de um mundo sem visão. Por via dos acontecimentos, com o avançar da narrativa, as condições no asilo tornam-se degradantes e a moralidade começa a não existir. Será a moralidade uma capa turva sob a essência do ser?
Nesta belíssima alegoria escrita por José Saramago, trabalhada a dois níveis, está encerrada uma doutrina moral que vai mais além da cegueira física e das suas consequências: trabalha num plano espiritual ou metafísico, explorando o quão frágil o conceito de sociedade pode ser e o quão facilmente desabam os seus alicerces face ao desastre, seja ele de que origem for. É um exercício num cenário de “e se tal acontecesse”, no qual o escritor faz cair todo o conceito de sociedade, baseando-se principalmente nas situações reais que o ser humano tem de enfrentar – terramotos, tsunamis, incêndios – e que são capazes de destruição extraordinária.
Provavelmente o aspecto mais surpreendente da obra é o seu realismo e claustrofobia que é induzida no leitor. Ao longo de todo o livro, Saramago usa mais uma vez o seu estilo literário - longos parágrafos sem qualquer pontuação – mas, devido à temática da obra, encaixa-se perfeitamente nela, uma vez que num mundo de cegos ninguém sabe quem está a falar, misturando-se então a confusão da narração com a confusão do mundo ficcional. Por esse motivo, ‘a mulher do médico’, ‘o médico’, etc, é a maneira como as pessoas são referidas neste livro. Têm títulos, mas não têm nomes, tornando esta ausência numa obra mais universal.
A obra de José Saramago tem sido muitas vezes comparada com “A Peste”, do existencialista Albert Camus. Após ler as duas, a esta última falta-lhe a riqueza das descrições e as emoções do caos que o Ensaio tem. É, portanto, uma obra a não perder de vista.
Pedro Xavier
1 comentário:
Quando um jovem tem tempo para ler, mesmo a escrita difícil, embora imaginativa, de Saramago, significa que o Futuro pode ser, afinal, promissor!
Saramago já foi o meu escritor Português contemporâneo favorito! Hoje é António Lobo Antunes, que consegue captar e registar para eternidade (do vosso tempo), embora com uma escrita também complicada, a idiossincrasia do Povo Português!
Mas a obra de Saramago é certamente mais imaginativa e deixa, de forma indelével, na nossa memória, tantas e tantas personagens e imagens, que nos são tão familiares...
Quem lê, vê mais e melhor. Que tal o Ensaio sobre a Lucidez, em tempo de eleições que se avizinham? Não é o que "eles" merecem?
Paulo Oliveira
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