O texto seguinte foi publicado no blog Deuxieme a 20 de Março de 2008, com o título: «Estreias da Semana».
O AMOR EM TEMPOS DE CÓLERA
Florentino Ariza (Javier Bardem) é um jovem poeta ingénuo que trabalha nos correios, que se apaixona perdidamente por Fermina Daza (Giovanna Mezzogiono), que lhe corresponde. O romance não é bem visto aos olhos do rico e poderoso Lorenzo Daza (John Leguizamo), pai de Fermina, que assim envia a sua filha para junto da prima, longe de tudo e todos durante uns anos. Florentino aguarda, virgem, a chegada do seu amor, mas quando Fermina regressa encara-o com desprezo, recebendo antes o cortejo de Juvenal Urbino (Benjamin Bratt), um médico famoso com quem se irá casar. De coração ferido, Florentino vinga-se na carne de outras mulheres, enquanto espera que Juvenal morra para reconquistar Fermina, que é o amor da sua vida.
Partindo da premissa da aclamada obra do escritor Gabriel García Márquez, o realizador Mike Newell (Donnie Brasco, Harry Potter e o Cálice de Fogo) filma uma belíssima história de amor sob um olhar absolutamente vazio, sem ideias de cinema, preso a um argumento paupérrimo, que faz de um elenco tão prestável um verdadeiro bando de zombies sem alma nem sangue. É uma tragédia ver uma obra literária, tão importante e relevante como esta, ser reduzida a um telefilme com más prestações, grandes cenários meramente figurativos e sem força nem papel na história, captados por uma realização banalíssima, que não desperta qualquer estímulo no mais comum dos espectadores, ao longo das mais longas duas horas e vinte de sempre. A cultura latino-americana é mostrada sobre os mais batidos “clichés” sociológicos, os cheiros e cores das paisagens são uma realidade distante ou quase nula, as cenas de amor e sexo são tão profundas como as da saga Emanuelle, os actores são monólitos de inexpressividade, dirigidos sobre um completo descuido e num tom de farsa terrivelmente penoso de se ver (de salientar ainda que a caracterização das personagens no seu estado idoso é incrivelmente mal conseguida, a qualquer minuto se teme que sobrancelhas ou narizes ou peitos caiam sem piedade para desmascarar o óbvio). Contra todas as expectativas, seja pelo poder da obra de García Márquez ou até pela competência de Newell já verificada em trabalhos anteriores, O Amor em Tempos de Cólera é, desde já, um dos piores filmes que estreou entre nós (a juntar-se às Duas Irmãs Bolena e ao indescrítivel 10,000 AC). E que pena que assim é.
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AUGUST RUSH – O SOM DO CORAÇÃO
Evan Taylor / August Rush (Freddie Highmore, que podemos ver actualmente em As Crónicas de Spiderwick) é um menino orfão especial, com um enorme talento para a música. Reduzido ao orfanato e sem amigos, Evan nunca desistiu da ideia de um dia encontrar os seus verdadeiros pais, que não conhece mas imagina nos seus sonhos. Com receio de ser entregue a uma família adoptiva, Evan parte em busca dos seus entes queridos, e depara-se com um mundo que desconhece, que o levará contra um vagabundo oportunista do seu dom (Robin Williams), e o irá fazer enfrentar os seus medos interiores, na luta para encontrar a sua mãe (Keri Russel) e o seu pai (Jonathan Rhys Meyers), curiosamente dois excepcionais músicos que seguiram forçosamente vidas separadas. A música revela-se, por isso, a chave para o seu encontro.
Kristen Sheridan (filha de Jim Sheridan, que escreveu o argumento de Na América) é a realizadora deste interessante filme, recheado de boas intenções, mas que infelizmente se revela fraco, e por vezes lamechas, no passar da sua bonita mensagem. O seu argumento pobre é a principal causa para o desnorte do filme, que contém a acção bem delineada, mas que se apoia em pressupostos e personagens de linhas demasiado maniqueístas (onde Robin Williams surge num registo secundário absolutamente deplorável, quer pela sua interpretação quer pelo conteúdo da personagem, que nos remete para um “cliché” género Oliver Twist) e que deturpam, no seu plot final, uma visão mais humana (com que o filme até arranca de forma interessante) que a acção tomara no seu início, e que se pedia, sobretudo, no fim. Por isso, temos um eterno lugar comum, misto de contos de fadas, de meninos perdidos, mundos muito estilizados, e um inevitável e descarado “happy end”, misturados à deriva de bons costumes e valores familiares nem sempre fiéis à realidade que os circunda. No entanto, tudo isto não invalida o eficaz trabalho de Sheridan no cuidado da narração e evolução das personagens (boa coordenação de flashbacks com acção presente), bem assentes graças também ao bom trabalho de Freddie Highmore, de Keri Russell (mãe que se refaz com pequenos pedaços do filho), e ainda, de Jonathan Rhys Meyers, num registo diferente mas igualmente competente e caloroso.
2 / 5
HORTON E O MUNDO DOS QUEM
Horton é um elefante divertido, dotado de uma enorme imaginação, que habita numa selva muito peculiar. Um dia, Horton ouve, inadvertidamente, um curioso pedido de ajuda, vindo de um grãozinho de pó que flutua pelo ar que é, na verdade, um planeta minúsculo, onde existe uma cidade chamada “Quem Vila”, onde habitam seres microscópicos que ninguém consegue ver. Os "Quem", seus habitantes, pedem a Horton, dotado de uma excelente audição, que os proteja no seu mundo exterior, mas a incompreensão dos outros animais da selva irá causar-lhe um enorme caso de trabalhos.
Baseado nas personagens de Theodor Seuss Geisel (Dr. Seuss), Horton e o Mundo dos Quem é uma deliciosa história, realizada por Jimmy Hayhard e Steve Martino, que se debruça sobre o poder do mais perfeito processo de animação (trazido até nós, neste caso concreto, pelos Estúdios Blue Sky), onde se esconde uma fabulosa e encantadora história de variados contornos sociais da actualidade, bem explorada numa vertente que atinge os públicos mais novos, como também os mais velhos, de igual forma. Num divertido registo, Jim Carrey transporta para Horton os seus mais diversos tiques e manias de representação, e sobretudo, em paralelo com a dimensão física do herói surgem feitos e emergem necessidades de enorme importância humana, ainda que devidamente mascaradas sobre o comum receio pueril e confronto racional, inerentes a todos os seres. Num interessante triângulo de acções, onde Horton colabora com o presidente da Vila dos Quem (o sempre excelente Steve Carell) e enfrenta a Canguru dominadora da selva (Carol Burnett), é-nos fornecida uma luminosa comédia, onde os cenários e os seus efeitos apaixonam os espectadores, bem como os personagens secundários e os seus gags (o grupo de macacos Wickersham munidos de bananas e o abutre Vlad Vladikoff – com a voz de Will Arnette – são claros exemplos), para além ainda do inventivo e mágico argumento, que se apresenta de forma linear e simples, mas bem carregado de uma mensagem nada vulgar, onde o "tamanho" das coisas ganha um papel fundamental. Mais um triunfo do mundo da animação para todos os públicos sem excepção. Na versão portuguesa temos as vozes de João Baião, Vítor Norte, Inês Castel-Branco e Cláudia Cádima.
4 / 5
OS FRAGMENTOS DE TRACEY
Tracey Berkowitz (Ellen Page), é uma adolescente de 15 anos, que se apresenta nua sob uma velha cortina de banho na parte de trás de um autocarro, enquanto procura desesperadamente o seu irmão mais novo, Sonny (Zie Souwand). Numa interminável viagem, Tracey mergulha no seu mundo estilhaçado, onde em pequenos fragmentos se descobre uma família disfuncional, um mundo de fantasias com o seu namorado Billy Zero (Slim Twig) e uma fragilidade humana de enorme escala, onde a verdade e a criação irreal do desejo andam de mãos dadas.
Que Ellen Page é uma actriz absolutamente notável já ninguém tinha dúvidas (é só ver ou rever Hard Candy e/ou Juno, ainda em exibição entre nós), mas ainda assim cada projecto seu comporta uma curiosa questão inicial: que registo esta jovem actriz nos vai presentear? Os Fragmentos de Tracey é, entre várias coisas, uma surpresa; é uma surpresa enquanto objecto cinematográfico, e uma vez mais enquanto representação “solo” de Ellen Page. Sob um formato “fragmentado”, Bruce McDonald (realizador oriundo da TV) conduz-nos num mundo desencantado, onde o ecrã nos surge fragmentado noutros diversos ecrãs, onde a mesma acção ou acções paralelas decorrem, e que nos presenteiam, numa brilhante narrativa não linear, um retrato cruel da viagem de uma jovem, que se vê a braços com a culpa de ter “perdido” o seu irmão pequeno. No seio desta incessante procura encontram-se necessidades de resolução para a sua família disfuncional, para a marginalização da parte dos seus colegas da escola, e para o despertar sexual e onírico que o seu namorado (que encarna os cânones clássicos do “Rock n’ Roll way of life”) lhe provoca; mundos fragmentados que habitam na sua vida desequilibrada. Perante este argumento de tom clássico e de cunho visual arrebatador, esta é uma obra fascinante e de originalidade evidente, que nos mostra novos caminhos do cinema digital e inovadoras vertentes de fazer cinema.
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Francisco Toscano Silva
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