quarta-feira, 28 de maio de 2008

Princesa Encantada da Quimera


Florbela Espanca escreveu, no seu último ano de vida, um Diário que tive oportunidade de ler hoje. As suas últimas palavras foram escritas a 2 de Dezembro de 1930, seis dias antes do seu suicídio, a 8 de Dezembro do mesmo ano, dia em que completava 36 anos de idade.
Neste diário, pode notar-se uma evolução de estados de espírito que explica, de certa forma, o culminar trágico que se conhece.
Muito me tocaram as primeiras linhas escritas pela poetisa no primeiro dia (a 11 de Janeiro de 1930), uma reflexão sobre a desagregação do tempo, que "Não sinto deslizar [o tempo] através de mim, sou eu que deslizo através dele e sinto-me passar com a consciência nítida dos minutos que passam e dos que se vão seguir".
A poetisa queixa-se de não conseguir conhecer-se verdadeiramente ('problema' recorrente de muitos poetas) e, por vezes, sente-se invulgarmente entediada com a vida. "Attendre sans espérer - poderia ser a minha divisa, a divisa do meu tédio que ainda se dá ao prazer de fazer frases".
Em alguns dias dos primeiros meses do Diário, Florbela Espanca mostra-se feliz por estar viva, regozija-se perante acontecimentos que, embora vulgares, lhe parecem carregados de algum simbolismo. Relembre-se, "Viver não é parar: é continuamente renascer".
É muitas vezes invadida de uma nostalgia doce que a faz sentir-se bem.
No entanto, é logo no mês de Fevereiro que Florbela começa a mostrar-se indignada perante a vida e os outros. "Ser doido é a única forma de possuir e a maneira de ser alguma coisa de firme neste mundo".
Já nem mesmo consegue apreciar os romances que lê.
Mostra, por vezes, alguma esperança indefinida, "A vida tem a incoerência de um sonho. E quem sabe se realmente estaremos a dormir e a sonhar e acabaremos por despertar um dia? Será a esse despertar que os católicos chamam Deus?".
Com a chegada do Outono e a proximidade do Inverno, denota-se naquelas linhas uma estranha exultação da morte, como única solução possível. "A morte definitiva ou a morte transfiguradora? Mas que importa o que está para além? Seja o que for, será melhor que o mundo! Tudo será melhor do que esta vida!".
As suas últimas palavras formam uma linha, uma simples linha carregada de tanta coisa...
E não haver gestos novos, nem palavras novas!

Sara Toscano

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