quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Os Cus de Judas (parte II)

«Passamos vinte e sete meses juntos nos cus de Judas, vinte e sete meses de angústia e de morte juntos nos cus de Judas, nas areias do Leste, nas picadas dos Quiocos e nos girassóis do Cassanje, comemos a mesma saudade, a mesma merda, o mesmo medo, e separamo-nos em cinco minutos, um aperto de mão, uma palmada nas costas, um vago abraço, e eis que as pessoas desaparecem, vergadas ao peso da bagagem, pela porta de armas, evaporadas no redemoinho civil da cidade.»

Por onde começar quando se fala de Lobo Antunes? Pelo princípio, pelo meio, ou pelo fim? A questão não é tão simples como aparenta ser. Analisar a sua obra, ou parte dela, é um exercício tremendamente arriscado, visto estarmos perante um dos mais complexos e geniais autores e romancistas portugueses. Os Cus de Judas, o segundo livro de António Lobo Antunes, faz parte de uma trilogia que inclui Memória de Elefante (anterior) e Conhecimento do Inferno (posterior). O livro é um testemunho e uma "dolorosa aprendizagem da agonia", diz o autor acerca da guerra em Angola. Ao evoluirmos gradualmente na leitura, vai-se desmontando o ultramar, pelos meses em que o narrador se encontrou ao serviço da pátria portuguesa.

Organizado em 23 capítulos, ordenados de A a Z, sem interrupções na ordem do alfabeto, a acção desenrola-se em dois planos temporais: um cronológico, período de tempo de uma noite, que vai do encontro do narrador com uma mulher num bar até o amanhecer, depois de uma noite de sexo sem amor, e o tempo elástico, reconstituído a partir fragmentos soltos, recolhidos dos escombros das memórias de uma colecção de insucessos e fracassos. O tempo cronológico é um enorme monólogo em que o narrador expõe a uma mulher sem nome todas as suas angústias e a mediocridade da vida que o cerca. A sensação de fracasso que domina o narrador está intimamente ligada aos insucessos dos tempos em que servia o exército português no combate às guerrilhas africanas.

Partindo do relato do narrador, das experiências a que foi sujeito e da forma como as interpreta e com elas lida, traça-se um percurso que desemboca inevitavelmente na conclusão/admissão do gigantesco e inacreditável absurdo da guerra. Delineia-se um retrato demasiado bruto e verdadeiro para se poder falar de uma caricatura. A seriedade e crueldade da narrativa fazem do livro uma denúncia. Ou antes: é deste modo apresentada uma visão da realidade, uma posição sobre os factos, uma voz silenciada que entra em erupção e vem contar a sua versão. Numa narrativa não-linear e fragmentada, Lobo Antunes revela as inquietações existenciais de um ser humano, na indelével experiência de uma guerra, que se misturam às memórias de infância e juventude na Lisboa salazarista.

O autor utiliza, na maior parte do romance, o fluxo de consciência e da associação de ideias, para construir a história e o perfil de seu narrador-protagonista, uma personagem que, a partir de "uma dolorosa aprendizagem da agonia", vê a sua vida e os seus valores estilhaçados pela melancolia. O que lhe resta são fragmentos de memória — a criança que visitava com os pais o jardim zoológico aos domingos, o jovem que assiste impassível ao seu futuro a ser traçado pela autoridade inquestionável de uma família salazarista, o adulto apático e frustrado diante da violência que lhe retira as rédeas e o sentido da vida.

Decadência, putrefacção, pestilência, morte, violência e absurdo, são as palavras-chave desta obra. Ao regressar a Portugal, após vinte e cinco meses de sofrimento a servir como médico na Guerra Colonial, o narrador (autor) desabafa. O sofrimento, a violência, as mortes e a hipocrisia política vividas marcaram-no de tal maneira que ele não se consegue adaptar à vida, uma vez que acaba por se separar da mulher, Isabel, com quem teve duas filhas. E assim, decifrando a noite, o deserto, os homens, a luz e as trevas, depara-se consigo mesmo. A verdade o Homem que emerge dentro de si, quando supera a si mesmo, quando diz não a tudo aquilo que o sufoca, o desespera, quando supera África, terra de resistência, terra de epifania, porque “ao se medir com um obstáculo, o homem aprende a se conhecer”.




Pedro Xavier

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