Por onde começar quando se fala de Lobo Antunes? Pelo princípio, pelo meio, ou pelo fim? A questão não é tão simples como aparenta ser. Analisar a sua obra, ou parte dela, é um exercício tremendamente arriscado, visto estarmos perante um dos mais complexos e geniais autores e romancistas portugueses. Os Cus de Judas, o segundo livro de António Lobo Antunes, faz parte de uma trilogia que inclui Memória de Elefante (anterior) e Conhecimento do Inferno (posterior). O livro é um testemunho e uma "dolorosa aprendizagem da agonia", diz o autor acerca da guerra em Angola. Ao evoluirmos gradualmente na leitura, vai-se desmontando o ultramar, pelos meses em que o narrador se encontrou ao serviço da pátria portuguesa.
Organizado em 23 capítulos, ordenados de A a Z, sem interrupções na ordem do alfabeto, a acção desenrola-se em dois planos temporais: um cronológico, período de tempo de uma noite, que vai do encontro do narrador com uma mulher num bar até o amanhecer, depois de uma noite de sexo sem amor, e o tempo elástico, reconstituído a partir fragmentos soltos, recolhidos dos escombros das memórias de uma colecção de insucessos e fracassos. O tempo cronológico é um enorme monólogo em que o narrador expõe a uma mulher sem nome todas as suas angústias e a mediocridade da vida que o cerca. A sensação de fracasso que domina o narrador está intimamente ligada aos insucessos dos tempos em que servia o exército português no combate às guerrilhas africanas.
Partindo do relato do narrador, das experiências a que foi sujeito e da forma como as interpreta e com elas lida, traça-se um percurso que desemboca inevitavelmente na conclusão/admissão do gigantesco e inacreditável absurdo da guerra. Delineia-se um retrato demasiado bruto e verdadeiro para se poder falar de uma caricatura. A seriedade e crueldade da narrativa fazem do livro uma denúncia. Ou antes: é deste modo apresentada uma visão da realidade, uma posição sobre os factos, uma voz silenciada que entra em erupção e vem contar a sua versão. Numa narrativa não-linear e fragmentada, Lobo Antunes revela as inquietações existenciais de um ser humano, na indelével experiência de uma guerra, que se misturam às memórias de infância e juventude na Lisboa salazarista.
O autor utiliza, na maior parte do romance, o fluxo de consciência e da associação de ideias, para construir a história e o perfil de seu narrador-protagonista, uma personagem que, a partir de "uma dolorosa aprendizagem da agonia", vê a sua vida e os seus valores estilhaçados pela melancolia. O que lhe resta são fragmentos de memória — a criança que visitava com os pais o jardim zoológico aos domingos, o jovem que assiste impassível ao seu futuro a ser traçado pela autoridade inquestionável de uma família salazarista, o adulto apático e frustrado diante da violência que lhe retira as rédeas e o sentido da vida.
Decadência, putrefacção, pestilência, morte, violência e absurdo, são as palavras-chave desta obra. Ao regressar a Portugal, após vinte e cinco meses de sofrimento a servir como médico na Guerra Colonial, o narrador (autor) desabafa. O sofrimento, a violência, as mortes e a hipocrisia política vividas marcaram-no de tal maneira que ele não se consegue adaptar à vida, uma vez que acaba por se separar da mulher, Isabel, com quem teve duas filhas. E assim, decifrando a noite, o deserto, os homens, a luz e as trevas, depara-se consigo mesmo. A verdade o Homem que emerge dentro de si, quando supera a si mesmo, quando diz não a tudo aquilo que o sufoca, o desespera, quando supera África, terra de resistência, terra de epifania, porque “ao se medir com um obstáculo, o homem aprende a se conhecer”.
Pedro Xavier
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