Vamos esquecer que estamos em 2008, vamos esquecer que Vicky Cristina Barcelona é o mais recente filme de Woody Allen; esquecer que em 2005 nunca houve aquela obra-prima chamada Match Point; esquecer a trágica história dos dois irmãos em Cassandra’s Dream; esquecer todas as formas de simbolismo e iconografia das tragicomédias inerentes à filmografia mais recente do realizador nova-iorquino. Regressemos, pois, a 2004.
De todos os filmes que Woody Allen apresentou neste século (excluindo Vicky Cristina Barcelona) Melinda e Melinda era o único que ainda me faltava visionar e, em abono da verdade, vontade de ver o filme não era muita. O arranque no novo século não foi o mais auspicioso. Foi visível a falta de inspiração do realizador na elaboração de novas ideias, apesar de nos terem sido apresentadas histórias que, partindo de uma ideia original, rapidamente caíram como obsoletas: uma sobre hipnotismo (The Curse of the Jade Scorpion), outra sobre um realizador cego (Hollywood Ending) e outra sobre tudo - ou sobre nada (Anything Else). É claro, estamos a falar de Woody Allen. Nenhuma das suas obras é realmente má, tudo depende de onde se coloca a fasquia.
Dois encenadores (Larry Pine e Wallace Shawn) estão sentados à volta de uma mesa, com amigos, a debater a temática tragédia versus comédia. Alguém dá uma sugestão de uma situação hipotética e cada encenador conta a sua versão da história, uma comédia de um lado e uma tragédia de outro. Cada uma das versões gira em torno de Melinda (Radha Mitchell), uma mulher problemática que, recém-chegada a Nova Iorque, interrompe um jantar de amigos. Na versão trágica, fica no loft do actor Lee (Jonny Lee Miller) e da amiga de longa data Laurel (Chloe Sevigny), apaixona-se por um pianista e acaba por se tornar vítima de um triângulo amoroso. Na versão cómica, vive num apartamento, vizinho ao da realizadora egocêntrica Susan (Amanda Peet) e do actor desempregado Hobie (Will Ferrell). Hobe apaixona-se por Melinda, mas o timing não é o melhor.
A fotografia do filme é da responsabilidade de Vilmos Zsigmond, que dá às duas versões da história diferentes tonalidades: na trágica predomina uma coloração baseada no dourado; na cómica são tons de vermelho. Pela arte de Zsigmnond torna-se perfeitamente claro qual das histórias se está a observar e, pela maestria de Allen, as duas fundem-se por vezes baralhando o espectador, ou avisando-o de que a comédia e a tragédia não são universos indissociáveis. Outro ponto forte do filme reside na interpretação de Radha Mitchell (Phone Booth, Finding Neverland). Mitchell é um camaleão, sobretudo devido à roupa e à maquilhagem, mas afirma uma sólida dicotomia da personagem percorrendo todo um universo de emoções, do desespero suicida à alegria desmesurada.
Melinda e Melinda é, sem qualquer margem de dúvida, o ponto alto da filmografia do realizador neste século (até ao ano da sua estreia) e, também, o ponto de ruptura com a produção norte-americana. São claros os sinais que Woody Allen faz passar para o exterior, distribuindo pedaços da sua persona pelas várias personagens do filme. Will Ferrell interpreta a personagem cómica da personalidade de Allen, assim como já o tinha feito Kenneth Branagh em Celebrity. O pianista por quem Melinda se apaixona é Chiwetel Ejiofor e representa a insatisfação de Allen face à falta de compreensão do público americano pelo seu trabalho, propondo mesmo a ideia de emigrar para Barcelona. Coincidência?
O resto é mais de Woody Allen, como vimos em Hannah e as Suas Irmãs, Crimes e Escapadelas, Annie Hall e Manhattan. Um adeus à cidade que viu crescer para fazer de outras sua obra.
Pedro Xavier
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